Ao longo da história, as cidades passaram por mudanças transformacionais, abandonando velhas práticas e adotando novas. A cidade de Rio de Janeiro, com sua rica tapeçaria de memórias, não é exceção a esse fenômeno. Dentro dos seus limites encontram-se inúmeros exemplos de lugares e práticas que se perderam no passado, entre os quais se destaca o Matadouro da Cidade, como uma pungente lembrança de épocas passadas.
A primeira encarnação do Matadouro da Cidade situava-se junto às já extintas praias de Santa Luzia. Criado em 1774 por decreto do vice-rei Marquês de Lavradio, esse matadouro público teve papel fundamental na distribuição de carne para toda a região do Rio de Janeiro. “Foi instalado em 1774 por ordem do vice-rei Marquês de Lavradio em Santa Luzia, perto de onde se encontra o obelisco da Av. Rio Branco está hoje. Esse tipo de trabalho tinha que ser feito em áreas isoladas devido à bagunça que gerava”, destaca o pesquisador Carlos H no site Curiosidades Cariocas.
Com a chegada da Família Real ao Brasil em 1808, a orla de Santa Luzia passou por uma transformação. Dom João, devoto padroeiro da igreja de Santa Luzia, utilizava esta rota para suas viagens. As reformas deram origem a residências ao longo da orla, levando à relocalização do Matadouro. A perspectiva de viver próximo ao sangue e restos de animais não era atraente para a população.
Em 1838, o Matadouro da Cidade mudou-se para sua nova sede no que hoje é a região da Praça da Bandeira, então conhecida como Praça do Matadouro. Com a evolução da área da Praça da Bandeira, a necessidade de manter o matadouro distante das áreas povoadas motivou mais uma mudança. Santa Cruz, localizada na ainda isolada Zona Oeste, foi escolhida como o novo local. “A instalação, ou melhor, a transferência do matadouro para Santa Cruz foi essencialmente uma forma de levar a 'sujeira' para longe, onde não causaria transtornos”, enfatiza um trecho do site Fatos, Fotos e Registros, supervisionado pelo Professor Deonísio da Silva.
Apesar dos desafios, a presença do Matadouro Carioca estimulou o desenvolvimento de assentamentos operários em Santa Cruz e o tornou o primeiro bairro do Rio de Janeiro a ter iluminação elétrica, alimentada pelo gerador do matadouro. “Em 1884, a Estrada de Ferro D. Pedro II (mais tarde conhecida como Central do Brasil a partir de 1899) estabeleceu o ramal do Matadouro, com trilhos contornando o prédio, a apenas 700 metros da Estação de Santa Cruz. Esse ramal funcionou até a década de 1980, quando foi desativado”, relata Carlos H.
O próprio Matadouro da Cidade acabou por ser encerrado. Hoje, o local abriga uma escola técnica, o NOPH – Núcleo de Orientação e Pesquisa História de Santa Cruz e o ECOMUSEU. A área também possui a Avenida Matadouro, localizada na Fazenda Imperial de Santa Cruz. Originalmente projetada pelo arquiteto paisagista Auguste Marie Glaziou, a avenida agora compreende apenas um pequeno trecho, abrigando remanescentes da antiga Vila Operária do Matadouro Industrial (Vila Operária do Matadouro Industrial).
Como arquitecto paisagista, Glaziou foi responsável por uma multiplicidade de projectos no Tribunal, incluindo a reabilitação do Passeio Público, dos jardins da Quinta da Boa Vista e do Campo de Santana.
A Terceira Sede do Matadouro Industrial, também conhecida como Matadouro Imperial, foi inaugurada em 30 de dezembro de 1881, pelo Imperador Dom Pedro II, com a presença da Princesa Isabel. Para garantir uma força de trabalho para as operações do matadouro, duas fileiras de casas foram construídas na periferia da sede administrativa dentro do complexo do matadouro. Os moradores locais apelidaram esse arranjo de “correr de casas” (Benedicto Freitas, 1950).
A Vila Operária compreendia quatro quarteirões (dos quais restam dois), totalizando 38 casas assim distribuídas: 30 foram divididas em duas unidades para acomodar mais famílias de funcionários, oito foram desocupadas e reservadas (uma para supervisores, duas requisitadas pela Administração do Matadouro, uma para a escola de alfabetização dos filhos dos trabalhadores, três para o comércio, uma para o pecuarista e uma para os curtumes).
“Essas casas chamavam-se Avenida Matadouro, servindo como uma forma de assistência, um subsídio habitacional para os trabalhadores. Freitas documentou 214 indivíduos, considerados de 'absoluto interesse genealógico'” (Morais, 2019). Entre os residentes, havia 164 brasileiros, 38 portugueses, 2 espanhóis, 7 paraguaios e 3 africanos, incluindo 53 crianças (Freitas, 1950).
Em essência, a transformação do Matadouro da Cidade reflete não apenas a mudança da paisagem urbana do Rio de Janeiro, mas também a intrincada interação entre desenvolvimentos históricos, necessidades sociais e planejamento urbano. Desde os primórdios nas margens da praia de Santa Luzia até à sua derradeira encarnação em Santa Cruz, o percurso do Matadouro espelha a evolução de uma cidade em constante adaptação à evolução da sua identidade e prioridades. À medida que o Rio de Janeiro continua a progredir, sua capacidade de abraçar e preservar essas camadas de história contribui para a tapeçaria de sua cultura vibrante e multifacetada.
Referência: Diário do Rio. História do Matadouro da Cidade do Rio de Janeiro. Brasil, 14 de março de 2022. Disponível em: História do Matadouro da Cidade do Rio de Janeiro – Diário do Rio de Janeiro (diariodorio.com). Acesso em: 07 de agosto de 2023.
O Rio. Palacete Princesa Isabel – Antigo Matadouro de Santa Cruz. Brasil, [sd]. Disponível em: SEDREPAHC – Palacete Princesa Isabel – Antigo matadouro de Santa Cruz (rio.rj.gov.br). Acesso em: 07 de agosto de 2023.
Descubra Santa Cruz RJ. Avenida Matadouro: o Correr de Casas. Brasil, [sd]. Disponível em: Avenida Matadouro: o Correr de Casas – Descubra Santa Cruz RJ. Acesso em: 07 de agosto de 2023.
Barbara da Silva
Bárbara é graduada em História e Pedagogia pela UFRRJ e atualmente cursa o segundo grau em Ensino de Língua Inglesa. Apaixonada por temas de patrimônio, cultura e história social, dirige a página Mare Nostrum - Antiguidade e Idade Média, colabora com o portal Brazilian History e realiza pesquisas sobre o período do Estado Novo.